Racismo em tempos modernos
Democracia racial costuma ser um termo utilizado no Brasil por quem acredita na inexistência de preconceito de cor. Atualmente, as redes sociais são, por excelência, uma amostragem da presença dessa crença muito debatida no século anterior.
Dentro da lenda da democracia racial, seus adeptos, consciente ou inconscientemente, reclamam que a ausência de preconceito é justificada pela atmosfera pacífica da convivência social, sem guerras civis, onde quem diz ter um “amigo negro” é absolvido automaticamente após qualquer piada racista ou comentário degradante. E assim foi argumentada por homens como Florestan Fernandes, décadas atrás, ao responder a muitas das questões postas hoje, mas que aparentemente são ignoradas pelos paladinos da negação do racismo sob os interesses dos mais obscuros.
No habitat virtual emerge um antigo modelo de discurso que, se antes estava reservado a lugares próprios e passíveis de camuflagens, agora está despido para quem quiser ver. Basta uma notícia de constatação de preconceito racial, que uma burricada surge para reafirmar que o racismo é uma ilusão confeccionada por elementos X ou Y. Isso, é claro, quando não sentenciam os próprios negros por sofrerem racismo. É como acusar os judeus pelo holocausto ou grupos indígenas pelo seu próprio extermínio. Mas há quem faça.
Essa parcela da população foi adestrada, em partes, por subprodutos do pop virtual que flertam com posições racistas e fascistas. São guiados por jovens eleitos por vídeos do YouTube e seu arsenal de chavões e senso comum que deságua na opinião de um coletivo defensor da autoridade desse discurso. Sem muita afinidade com bibliografias e o mundo acadêmico, tornam-se inteligíveis para aqueles que necessitam de textos prontos para ruminar em suas páginas pessoais na pura ânsia de mascarar seus verdadeiros preconceitos.
São os mesmos que tentam buscar em Zumbi ou na Diáspora Africana, fruto do emparelhamento da mão de obra escravizada no Brasil durante séculos, a justificativa tacanha de que “negros negociavam escravizados”. Sendo assim, tudo bem, obrigado, voltamos para o zero a zero moral. Desconhecem a história, suas ferramentas de análise e as condições de cada contexto.
Em suas mastodônticas moralidades, acham que cotas raciais, por exemplo, legitimam o preconceito. Ignoram a estrutura das relações do pós-Abolição, que fortificou uma sociedade desigual não apenas socioeconômica, mas pela cor, como subterfúgio da manutenção das divisões sociais. Divisões que sobrevivem. Como pouco entendem do passado, pensam que as ações no país devem se resumir à sua existência. Além da ignorância dos processos históricos, há também o egoísmo latente.
Não tão raros, existem indivíduos que atribuem o direito a uma sociedade racial igualitária a partidarismos. Na alto do analfabetismo político, conferem a movimentos de esquerda o tema do racismo como pauta da ordem do dia. Como se a igualdade social pertencesse a grupos, e não ao todo.
Por fim, no submundo da “vergonha alheia” estão os que dizem sofrer “racismo inverso”. Que o peso da seleção natural recaia sobre esses sujeitos. Basta um negro chegar ao “lugar do branco”, que ele se transforma em um bicho exótico no zoológico do preconceito. Pinçam esse indivíduo do anonimato para justificar a inexistência de preconceito e desigualdade. Em uma sociedade em que, segundo o IBGE (2014), mais de 53% se declaram negros ou pardos, as tentativas de destacar as exceções confirmam o grau de disparidade. Enquanto o acesso profissional e universitário não representar o cotidiano, qualquer discurso de meritocracia é vazio.
Enquanto continuarem a buscar nas exceções o argumento a favor da democracia racial, prova-se que a sociedade é ainda mais desigual do que se imagina. Não tão distante, ainda sobrevive a frase de George Bernard Shaw: “Faz-se o negro passar a vida a engraxar sapatos e depois prova-se a inferioridade moral e biológica do negro pelo fato de ele ser engraxate”.
Leonardo Dallacqua de Carvalho é historiador e pesquisador
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